Transplante de membrana amniótica para o tratamento de pacientes com queimaduras de pele
Índice
Introdução
Queimadura de pele é um grave problema de saúde pública em todo o mundo, sendo responsável por cerca de 265.000 mortes anuais apenas em decorrência de incêndios. A grande maioria (96%) das mortes por queimaduras relacionadas a incêndios ocorre em países de baixa e média renda, e as queimaduras são uma das principais causas de anos de vida ajustados por incapacidade (DALYs) no mundo em desenvolvimento.
No Brasil, dados de 2023 demonstram que foram registradas 31.721 internações por queimaduras e corrosões, dentre essas, 16.572 por queimaduras de pequeno, médio e grande porte, e 887 pessoas faleceram devido a queimaduras e corrosões. Embora as queimaduras afetem todas as idades e gêneros, há uma leve predominância entre os homens. O álcool líquido e outros produtos inflamáveis são os principais responsáveis pelas queimaduras graves no país. A faixa etária de 0 a 9 anos é a mais afetada, seguida por adultos jovens.
Entre 2015 e 2020, informações importantes foram destacadas no Boletim Epidemiológico volume 53, nº 47, produzido pelo Ministério da Saúde em parceria com a Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ) e outras instituições. De acordo com o relatório, as queimaduras acidentais foram mais comuns em pessoas com idade entre 20 e 39 anos(40,7%), predominando no sexo masculino (57%) e com maior ocorrência em ambientes domiciliares (67,7%). A maior parte dessas queimaduras resultou do manuseio de substâncias quentes (52%). No contexto doméstico, as queimaduras afetaram principalmente jovens menores de 15 anos (92%) e idosos (84,4%), bem como mulheres (81,6%), com a maioria dos incidentes envolvendo o manuseio de líquidos ou materiais quentes. Por outro lado, acidentes no comércio, serviços e na indústria impactaram principalmente indivíduos entre 16 e 59 anos (73,6%). Durante esse período, foram registrados 19.772 óbitos por queimaduras, dos quais 53,3% (10.545) foram atribuídos a queimaduras térmicas, 46,1% (9.117) a queimaduras elétricas, e 0,6% (110) a outras causas, como agentes químicos, geladuras e radiação.
No Brasil, mais de 95% dos pacientes queimados são tratados pelo SUS (Sistema Único de Saúde) ou por meio de financiamento público estadual e municipal. [1]
Aspectos clínicos
As feridas por queimadura envolvem três zonas de lesão: a zona de coagulação, a zona de estase e a zona de hiperemia. A zona de coagulação é onde o tecido foi destruído no momento da queimadura. Ao redor dela, encontra-se a zona de estase, caracterizada por inflamação e baixa circulação sanguínea. Fora dessa área, há a zona de hiperemia, onde a circulação sanguínea não é afetada.
Muitas vezes, a área de estase pode piorar e se tornar necrótica nas primeiras 48 horas após a queimadura, fazendo com que a lesão inicial aumente em tamanho e profundidade.
As queimaduras desencadeiam uma resposta inflamatória sistêmica que pode resultar em complicações graves, como choque hipovolêmico, sepse e falência de múltiplos órgãos. A infecção é uma das principais causas de mortalidade, devido à perda da barreira cutânea e à subsequente colonização bacteriana das feridas.
Em crianças e idosos, o risco de complicações é maior devido à menor capacidade de resposta fisiológica.
Classificação das queimaduras:
- Superficiais (Primeiro Grau): Atingem apenas a epiderme, a camada mais externa da pele.
- Superficiais Parciais (Segundo Grau): Atingem a epiderme e parte da derme, especificamente a derme papilar. Essas queimaduras não destroem os anexos da pele e podem incluir sintomas como eritema e flictenas (bolhas).
- Profundas Parciais (Segundo Grau): Atingem até a derme reticular e causam destruição de muitos apêndices da pele.
- De Espessura Total (Terceiro ou Quarto Grau): Destroem completamente a epiderme, derme e anexos da pele, podendo atingir a fáscia muscular e o osso.
Entre os sintomas clínicos incluem-se eritema, formação de bolhas, umidade, hiperemia e palidez à pressão.
O tempo de cicatrização pode variar de 7 a 20 dias, dependendo da profundidade e extensão da queimadura.
Segundo Vale et al. (2005) a extensão das queimaduras é também um aspecto fundamental para determinar a gravidade das lesões e orientar o tratamento necessário, sendo classificada de acordo com a porcentagem da área corporal afetada:
- Leves (ou "pequeno queimado"): atingem menos de 10% da superfície corporal;
- Médias (ou "médio queimado"): atingem de 10% a 20% da superfície corporal;
- Graves (ou "grande queimado"): atingem mais de 20% da área corporal;
As queimaduras apresentam desafios significativos para a cicatrização e reparo, como bordas irregulares, necrose tecidual, dificuldades na regeneração dos tecidos, e a necessidade de tratamentos prolongados e dispendiosos, que muitas vezes exigem hospitalização.
Tratamento
O manejo inicial das queimaduras segue um protocolo sistemático para garantir que as principais ameaças à vida sejam abordadas rapidamente:
- Remoção da fonte de calor: A primeira medida é interromper o contato com a fonte de calor para evitar a progressão do dano tecidual;
- Resfriamento da área queimada: A aplicação de água corrente fria na área afetada por cerca de 10 a 20 minutos é recomendada para limitar a extensão da lesão e aliviar a dor. No entanto, deve-se evitar o uso de água gelada para prevenir hipotermia, especialmente em queimaduras extensas;
- Controle da dor: A analgesia é uma prioridade no tratamento inicial, e medicamentos como a meperidina são frequentemente utilizados para aliviar a dor intensa associada a queimaduras de segundo e terceiro graus;
- Reidratação e suporte hemodinâmico: A reposição de fluidos é crucial em queimaduras extensas para prevenir choque hipovolêmico. A fórmula de Parkland é comumente utilizada para calcular o volume necessário de reposição de fluidos nas primeiras 24 horas. É essencial ajustar a reposição de acordo com as necessidades específicas do paciente.
O tratamento inicial de queimaduras deve ser conduzido preferencialmente em centros especializados em queimaduras, especialmente em casos de queimaduras extensas ou complicadas.
Após o manejo inicial, os curativos convencionais são compostos, em sua maioria, de materiais básicos como gaze, algodão e ataduras, pomadas antibióticas que têm a função principal de proteger a queimadura de contaminantes externos, absorver o exsudato e manter um ambiente seco. Apesar de serem amplamente usados, esses curativos apresentam limitações em termos de eficácia, especialmente no tratamento de feridas mais complexas.
A escolha do curativo varia conforme a quantidade de exsudato presente, com algumas opções sendo mais indicadas para casos leves a moderados, enquanto outras são mais apropriadas para exsudato em maior quantidade. Curativos com agentes antimicrobianos, como iodo e prata, podem ser utilizados em diferentes tipos de queimaduras, dependendo da situação inicial.
Nesse sentido, os curativos modernos e membranas biológicas se destacam como as opções mais adequadas, pois além de garantir a melhor proteção contra infecções, também promovem uma qualidade superior na cicatrização, reforçando sua importância no tratamento de queimaduras. A incorporação dessas novas tecnologias tem se mostrado essencial para a melhoria dos protocolos de tratamento, beneficiando tanto a recuperação dos pacientes quanto o sistema de saúde como um todo.
Tratamento de queimaduras no SUS
O Sistema Único de Saúde (SUS) oferece recursos abrangentes para o tratamento de queimaduras, desde o cuidado inicial até a reabilitação.
- Coberturas e Curativos: Hidrocolóides, curativos antimicrobianos e gases estéreis para promover cicatrização e prevenir infecções.
- Medicamentos: Analgésicos (dipirona, opioides), antibióticos (sulfadiazina de prata), pomadas cicatrizantes e sedativos para controle da dor e infecções.
- Procedimentos: Desbridamento, enxertos de pele, reposição volêmica, fisioterapia, terapia ocupacional e suporte psicológico.
- Centros de Referência: Oferecem tecnologias avançadas, como lasers para cicatrizes, malhas compressivas e cirurgias reconstrutivas.
Avaliação da Tecnologia: Transplante de membrana amniótica (MA)
O tratamento com membrana amniótica em pessoas com queimaduras de pele tem como finalidade diminuir o tempo de cicatrização, da dor e a ocorrência de infecções.
A MA é a camada mais interna das três membranas fetais que compõem a placenta. Ela consiste em um tecido epitelial simples cúbico, separado do tecido conjuntivo subjacente por uma lâmina basal espessa, rica em colágeno tipo IV e glicoproteínas. Abaixo dessa lâmina basal, encontra-se uma matriz estromal avascular. Esta membrana fina e translúcida, que reveste a cavidade amniótica durante a gestação, é amplamente utilizada na medicina regenerativa, especialmente no tratamento de queimaduras, devido às suas propriedades anti-inflamatórias, antimicrobianas, imunomoduladoras e cicatrizantes. As propriedades biológicas da MA tornam-na uma ferramenta importante no tratamento de lesões e em terapias regenerativas. Entre suas características principais está a ação antibacteriana, que inibe o crescimento de bactérias, sendo essencial para prevenir infecções em áreas lesionadas. Isso é particularmente importante em ambientes onde a proliferação bacteriana pode comprometer a recuperação do tecido.
A coleta da MA é realizada de forma ética e segura, geralmente a partir de placentas doadas por mães que passaram por cesariana. Após a cesariana, a placenta é cuidadosamente transportada para um banco de tecidos, onde a membrana amniótica é separada das outras camadas da placenta em condições estéreis. Este processo requer atenção aos detalhes para evitar a contaminação e garantir que a membrana mantenha suas propriedades biológicas.
Após o isolamento do tecido amniótico da placenta humana, a membrana é dissecada para separar a membrana amniótica (hAM) da membrana coriônica (hCM), podendo ser dobrada ou mantida junta como membrana amnióticacoriônica (hACM) para processamento posterior. Uma vez retirada, a MA pode ser preservada por métodos de criopreservação ou liofilização39. A criopreservação envolve o congelamento da MA a baixas temperaturas, geralmente em nitrogênio líquido, o que mantém suas propriedades biológicas por longos períodos. Já a liofilização, ou desidratação, permite que a membrana seja armazenada à temperatura ambiente, facilitando seu transporte e manuseio. Independentemente do método de conservação escolhido, é essencial que o processo siga protocolos rigorosos para manter a esterilidade e a viabilidade do tecido.
O transplante da MA em pacientes com queimaduras é realizado em ambiente hospitalar. A membrana é cuidadosamente aplicada sobre a área queimada, servindo como um enxerto biológico. Antes do procedimento, a área queimada é preparada para receber o enxerto, o que pode incluir a limpeza e a remoção de tecido morto. A MA é então posicionada diretamente sobre a área afetada e fixada com curativos ou suturas, dependendo da extensão e localização da queimadura.
Recomendação da CONITEC
Os membros do Comitê de Produtos e Procedimentos da Conitec, presentes na 140ª Reunião Ordinária, realizada no dia 09 de maio de 2025, deliberaram, por unanimidade, recomendar a incorporação do transplante de membrana amniótica para o tratamento de pacientes com queimaduras de pele.
Ao deliberar, o Comitê ratificou a compreensão do impacto do transplante de membrana amniótica como opção terapêutica e da possibilidade de melhorias na regulamentação, no financiamento e no acesso com a sua incorporação.
Foi assinado o Registro de Deliberação nº 1006/2025.
Portaria
A PORTARIA SECTICS/MS Nº 46, DE 18 DE JUNHO DE 2025 torna pública a decisão de incorporar, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS, o transplante de membrana amniótica para o tratamento de pacientes com queimaduras de pele. [2]